A Flona do Jamaxim. Os 1.500 Bois. A Retirada. A Justiça Federal e a Retomada do Gado



 Cerca de 1.500 boi estavam prestes a ser retirados da Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim, no sudoeste do Pará, onde os animais são criados ilegalmente em uma área da Amazônia que deveria ser de mata preservada. Porém, nesta quarta-feira (22), a Justiça Federal barrou a operação do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), órgão ambiental do governo federal, e permitiu que o pecuarista apontado como infrator retomasse o gado. 

A decisão judicial é em caráter liminar (provisório) e foi tomada pelo desembargador Eduardo Filipe Alves Martins, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1). O processo corre em sigilo.

O magistrado reverteu sentença de 1ª instância que havia negado anteriormente o mesmo pedido do pecuarista Rodrigo da Cruz Pereira. Agora, com a decisão favorável, o fazendeiro tem dez dias para transportar o gado para fora da floresta protegida. 

O valor do rebanho apreendido supera R$ 4 milhões, estima o órgão ambiental. O ICMBio, ligado ao Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, deu início à operação em 3 de abril, quando publicou no Diário Oficial uma notificação para que pecuaristas  retirassem as cabeças dos chamados “bois piratas” em 30 dias. 

Como o transporte voluntário dos animais não ocorreu, o Ministério Público Federal do Pará (MPF-PA) expediu em 6 de maio uma recomendação para a remoção dos animais. A retirada de fato começou na última sexta-feira (17) na Fazenda Ferradura, arrendada por Rodrigo Pereira, mas embargada por desmatamento ilegal. 

O ICMBio e a Adepará (Agência de Defesa Agropecuária do Pará) cogitaram a possibilidade de destinar parte do gado apreendido para o Rio Grande do Sul, assolado por enchentes históricas. 

A operação visava remover até 6.000 animais de algumas fazendas da região. A ação, porém, foi bloqueada na primeira fazenda fiscalizada após a liminar judicial.

Na avaliação de uma fonte ligada à operação, que não será identificada, o caso ilustra a dificuldade de combater crimes ambientais na Amazônia. 

“Estão dando salvo conduto para uma pessoa que está com gado dentro de área embargada. É um salvo conduto para o crime”, critica. 

O advogado Pedro Henrique Gonçalves, responsável pela defesa do fazendeiro, diz que está na propriedade acompanhando o transporte dos animais. “Se não fosse a burocracia imposta, conseguiríamos retirar de forma mais eficiente”, afirmou. 

A apreensão de animais criados ilegalmente em áreas de conservação é considerada uma das medidas mais eficazes para coibir crimes ambientais na Amazônia.

Segundo o “Protocolo para Retirada de Gado de Áreas Protegidas”, do ICMBio, as multas e os embargos não têm surtido o efeito necessário.

De acordo com o documento, as multas aplicadas por desmatamento raramente são pagas e não costumam atingir seu objetivo. “A apreensão do gado criado ilegalmente nas áreas desmatadas e a retirada de estruturas ligadas a essa atividade tendem a reverter ambas as deficiências, já que promovem uma invariável descapitalização do infrator e, automaticamente, permitem a recuperação ambiental do local”, diz o texto. 

O MPF-PA, no documento em que recomenda a operação na Flona do Jamanxim, alerta que há “indícios de um esquema de “lavagem de gado’” na região. O protocolo do ICMBio também alerta para essa suspeita, na qual bois com origem em áreas irregulares são transferidos para locais sem qualquer ilegalidade – e assim misturados com animais criados de forma regular, dificultando o monitoramento. 

De acordo com a Procuradoria, esses animais criados ilegalmente em áreas de preservação costumam sujar toda a cadeia de produção de carne, pois acabam vendidos de forma indireta para frigoríficos, que posteriormente vendem a carne para supermercados.

Imagens feitas na Fazenda Ferradura mostram brincos de identificação de animais com o nome de outra propriedade fora da Flona do Jamanxim. É a Fazenda Arara Azul, a apenas 15 quilômetros da área embargada, e apontada como origem de centenas de animais vendidos por Rodrigo da Cruz Pereira, entre 2018 e 2022, segundo dados de trânsito animal obtidos pela reportagem. 

“Não vejo qualquer indício de “lavagem de gado”. Estamos tratando de trabalhadores rurais que estão na região desde a década de 80 e só fazem trabalhar. O único fato que envolve tais personagens, é o fato de serem familiares e atuarem no mesmo ramo de atividade, inexistindo crime”, respondeu Pedro Henrique Gonçalves, advogado de Pereira, após ser questionado sobre os brincos da Fazenda Arara Azul encontrados dentro da unidade de conservação. 

A Procuradoria alega também que há risco sanitário na criação de animais em áreas embargadas e sem registro, situação que não permite o controle e monitoramento adequado dos animais.

A Flona do Jamanxim é uma área de 1,3 milhão de hectares situada às margens da BR-163 e cobiçada pelo agronegócio. A rodovia é conhecida como estrada da soja e conecta a zona graneleira do norte do Mato Grosso aos portos exportadores no rio Tapajós. 

A unidade de conservação está também no centro de uma disputa judicial no Supremo Tribunal Federal envolvendo a construção da Ferrogrão – conhecida como “ferrovia da soja”. Segundo o MPF-PA, a área historicamente figura “como a unidade de conservação federal mais desmatada do país”. 

Desde 2006, quando foi criada, até 2022, quase 10% da floresta foram destruídos e convertidos em pasto para criação ilegal de gado.  A Flona do Jamanxim se tornou uma das áreas prioritárias de atuação do ICMBio neste ano, com foco na retirada dos animais. Essa ação se tornou mais frequente nas unidades de conservação da região. 

Em 2023, mais de 3.000 cabeças foram removidas da Reserva Biológica Nascentes da Serra do Cachimbo, segundo o MPF-PA. Tal operação resultou na destinação de mais de 4.200 hectares para recuperação ambiental, além de multas superiores a R$ 24 milhões.  

Na Flona do Jamanxim, só é permitida a exploração sustentável por ribeirinhos e extrativistas, além de atividades de pesquisa. Fazendeiros, porém, alegam que ocupavam a área antes de a reserva ser criada, mas que não receberam indenizações da União para deixarem o local.

No pedido ao TRF1, os advogados de Rodrigo da Cruz Pereira alegam que o pecuarista não é dono da área, mas sim um “terceiro de boa-fé”, que arrenda o imóvel desde 2018 e não tem “conhecimento acerca de possíveis ilegalidades”. 

Alega também que o dono do imóvel o possui desde 2002. “Naquela região existem pessoas que estão há décadas em seus imóveis, muito antes da criação da Flona, e o gado ali existente é fruto de uma vida toda“, dizem os advogados. 

Em sua decisão, o desembargador Eduardo Filipe Alves Martins entendeu que o pecuarista não teve acesso “ao auto de infração, ao relatório de fiscalização e ao processo administrativo que deu origem à notificação de retirada de gado de sua propriedade/posse, não podendo exercer o contraditório e a ampla defesa”.

“No arrendamento temporário de pastagens, não é usual se verificar a regularidade do imóvel cujos pastos são arrendados, bastando o conhecimento e a concordância de quem se apresenta como seu legítimo possuidor. E não consta, ao menos neste momento processual, que o agravante teria conhecimento de tais embaraços por outros meios”, diz o desembargador. 

No entanto, segundo a fonte ligada à investigação, a presença dos brincos da Arara Azul em área situada dentro da Flona é um indício de que o fazendeiro tinha conhecimento de que criava gado ilegalmente em uma unidade de conservação. 

O MPF-PA alerta em sua recomendação que “ninguém poderia manter atividades de pecuária em áreas ilegalmente desmatadas no interior da Flona Jamanxim e que isso, por si só, já ensejaria todas as medidas administrativas e criminais previstas em lei”.

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