O barco encontrado à deriva com corpos em decomposição, na região de Bragança, no litoral paraense, ainda é um mistério. A Marinha Brasileira afirma que a embarcação de 13 metros de comprimento não tinha qualquer motor ou sistema de propulsão. A Polícia Federal investiga se o equipamento foi furtado por pescadores na costa brasileira ou se o barco chegou ao país por meio de correntes marítimas. Mais de 14 mil imigrantes chegaram às Ilhas Canárias, arquipélago espanhol que era o provável destino do barco encontrado com 9 corpos no Pará, de 1º de janeiro até a última segunda-feira (15), segundo dados do Ministério do Interior da Espanha. O número equivale a um aumento de 490% na comparação com os 2.376 registrados no mesmo período de 2023.
O trajeto da África em direção à Europa pelo Atlântico é a segunda rota mais mortal do mundo, atrás apenas da que segue pelo Mar Mediterrâneo, segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM). Embora as Ilhas Canárias fiquem relativamente próximo da costa africana, muitas embarcações – em geral pequenas e precárias, como a que chegou ao Pará – acabam se afastando do litoral, acabam se perdendo no mar ao tentar escapar da vigilância de guardas costeiras, correndo o risco de cair em correntes marítimas no alto mar.
Oito corpos estavam dentro da embarcação, e um próximo a ela. A Polícia Federal suspeita, no entanto, que cerca de 25 pessoas estavam no veículo – já que foram encontradas 25 capas de chuva e 27 celulares. Em 2021, sete barcos semelhantes ao que chegou ao Pará atravessaram o Atlântico e foram encontrados – à deriva e com corpos – no Caribe e no Brasil. Um deles é o que foi encontrada em 1º de abril naquele ano por pescadores na costa do Ceará com três corpos em estado avançado de decomposição. Com eles, também foram encontrados celulares, além de cartões de crédito e dinheiro de países africanos.
Uma investigação de quase dois anos da agência de notícias Associated Press mostrou que um desses sete barcos, o que chegou no dia 28 de maio de 2021 a Tobago, ilha no Caribe, levou 135 dias para atravessar o Atlântico. Quando foi encontrado, o barco tinha 14 corpos, mas a suspeita é que ele transportava 43. Com esperança de identificá-los, a Cruz Vermelha recolheu amostras de DNA de familiares de pessoas desaparecidas. Os resultados ainda são desconhecidos. Até a publicação desta reportagem, nenhuma pessoa do barco encontrado no Pará havia sido identificada. Os documentos indicam que eles eram dos países africanos Mali e da Mauritânia.
Para o arquiteto naval e professor de projetos de embarcação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Sérgio Feitosa, o barco não tinha qualquer preparação para enfrentar longas viagens. “Para fazer uma travessia longa como essa, é preciso estar bem preparado. Os tripulantes devem estar equipados com GPS e cartas náuticas, por exemplo. Essa embarcação (encontrada no Pará) não é para esse tipo de viagem. Ela é feita para uma navegação costeira, voltada para a pesca. Provavelmente esse barco foi preparado para fazer uma travessia só até as Ilhas Canárias”, afirma.
O professor explica que o número de ocupantes era maior que a capacidade do barco. “Uma embarcação de 13 metros de comprimento não consegue levar 25 passageiros. Você não sai com essa quantidade de pessoas para pescar, nem passear. Foi uma forçação de barra colocar 25 pessoas ali. É uma situação degradante, extremamente desconfortável”, comenta.
Agora, a corporação investiga a possibilidade dos 16 corpos não encontrados terem sido lançados ou caído no mar. Ainda há a chance dos fragmentos corporais estarem na embarcação. Exames de DNA irão identificar essa hipótese. Segundo Feitosa, o barco é feito de madeira revestida com fibra de vidro. A composição, feita de forma artesanal, se mostrou resistente ao chegar intacta na costa brasileira.
“O barco passou por uma prova incrível. Foram quase cinco mil quilômetros à deriva. Ele passou no teste de flutuabilidade e resistência. Esses barcos costumam ser feitos de forma artesanal. Na África, por exemplo, esse conhecimento é adquirido ao longo de muitos anos, passa de geração em geração, de pai para filho. Não é porque é feito de forma artesanal que é feito sem cuidado”, ressalta o arquiteto naval.
Segundo a PF, o barco tinha uma espécie de porão, onde alguns corpos foram encontrados. O especialista explica que para quê servem essas estruturas: “Os jangadeiros, por exemplo, usam os porões para dormir. Ele é usado para descanso e para guardar alguns mantimentos. Então, cabe sim uma pessoa ali, mas é um espaço muito pequeno”.
Rebocado– Uma das coisas que mais chamaram a atenção dos especialistas foi o fato da embarcação ter sido encontrada sem qualquer motor ou sistema de propulsão. A falta de um sistema de navegação mínimo intrigou as autoridades. A Polícia Federal realizou diligências para investigar uma denúncia de que pescadores teriam furtado o motor do barco após encontrá-lo na costa brasileira.
Na opinião do professor da Uerj, essa hipótese dificilmente irá se confirmar. “Acho pouco provável que pescadores tenham furtado o motor. Para isso é preciso ter ferramentas. Os pescadores mais precavidos até andam com algumas para o caso de algum reparo de urgência, mas não é comum. Além disso, teria que tirar o reversor, hélice e eixo propulsor”, explica. Feitosa acredita que a embarcação estivesse sendo rebocada por um outro barco maior, antes de ficar à deriva.
“Pode ser que essa embarcação estivesse sendo rebocada, por isso já chegou no mar sem nenhum motor. Nesses casos, eles levam o barco até próximo à arrebentação das ondas e soltam (as ondas acabam levando a embarcação até a faixa de areia). Pode ter acontecido algum problema no meio do caminho e decidiram abandonar esse barco. Se ele tivesse mesmo um motor, seria necessário muito combustível para levar 25 pessoas”, opina.
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