Numa tarde de outubro, no centro de Itaituba, às margens do rio Tapajós, quase todas as lojas estavam fechadas – só quem compra ouro decidiu abrir. As ruas da cidade na Amazônia paraense lembravam um deserto. Não só por arder sob a maior seca na região em 40 anos, mas porque era feriado municipal, e havia pouca gente nas calçadas. Na mesma avenida onde ficam os bancos, vários estabelecimentos em sequência exibem, por quarteirões, placas com os termos “ouro”, “gold” e “compra-se”.
Dentro de uma dessas lojas que compram ouro de forma ilegal, quatro homens que usam relógio de ouro, pulseiras de ouro, anéis de ouro e colares de ouro mexem no celular debaixo de um ventilador de teto. Há um forno cheio de tralhas junto à parede e vidraças espelhadas que impedem a visão de quem está lá fora. Um homem grande e branco se levanta. Ele tem os cabelos puxados para trás, molhados de gel, a camisa aberta até o peito: “É venda de metal?”, pergunta.
Naquele dia, os atendentes da “rua do ouro” comemoravam os efeitos da guerra Israel-Hamas, que fizera a cotação do minério aumentar 5%, de 303 para 318 reais o grama. Em Itaituba, as lojas pagavam 295 reais. “Quando teve uma explosão no Líbano, o povo pensou que era guerra, e só num dia o [grama do] ouro subiu 25 reais. E aí tu imagina: 1 quilo de ouro é uma barra desse tamanhinho. Tu comprou de manhã e de tarde tu ganhou 25 mil reais”, anima-se André, outro comprador. No início de novembro, o banco americano Morgan Stanley publicou um relatório que, ao mencionar a tensão no Oriente Médio, recomendou o investimento em ouro, considerado um “porto seguro”, segundo o site Investing.
Mas logo o rosto de André murcha, seus olhos arregalados se contraem, ele se desanima. As últimas operações do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) contra os garimpos ilegais naqueles arredores, além das investigações recentes da Polícia Federal (PF) sobre a cadeia de comércio do ouro, acabaram freando os negócios, ele conta.
Depois de 627 operações desencadeadas pela PF contra garimpos ilegais entre janeiro e novembro de 2023, 439 prisões, 736 mandados de busca e apreensão, 459 milhões de reais apreendidos (91,8 milhões de dólares) e um prejuízo de 7,7 bilhões de reais (1,5 bilhão de dólares) aos garimpeiros em todo o Brasil, o clima era de incerteza na capital do ouro.
As vendas tinham diminuído, as apreensões, aumentado. As investigações do Ministério Público Federal (MPF) e da Polícia Federal travaram o funcionamento de algumas lojas. Até os requerimentos de Permissão de Lavra Garimpeira enviados à Agência Nacional de Mineração decaíram – foram 1.585 entre janeiro de 2021 e junho de 2022 e 850 entre janeiro de 2022 e junho de 2023, segundo o estudo Boletim do Ouro, do Centro de Sensoriamento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o núcleo responsável pelos mais importantes levantamentos sobre o setor nos últimos anos.
Durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), quando se iniciou a mais recente corrida pelo ouro no Tapajós, com o apoio do ex-presidente (cujo pai foi garimpeiro de Serra Pelada, um gigantesco buraco a céu aberto que virou um “formigueiro” na década de 1980), os garimpos ilegais proliferaram não só na região de Itaituba, mas também em outras paragens amazônicas.
A área garimpada dentro de terras indígenas cresceu 265% entre 2018 e 2022; em Unidades de Conservação, a alta foi de 75% no mesmo período, segundo estudo recente do MapBiomas, rede colaborativa composta por ONGs, universidades e empresas de tecnologia que se dedicam a estudos socioambientais. Quase metade (40,7%) dos garimpos da Amazônia foi aberta de 2018 para cá e mais de 50% dos que estão dentro de terras indígenas também. A explosão garimpeira foi tão avassaladora nos últimos anos que a área dedicada ao garimpo (legal e ilegal) ultrapassou a da mineração industrial.
O esquema – Por pagar menos impostos que o das mineradoras, o minério dos garimpos está sempre sob alta demanda. “O ouro das DTVMs é mais barato que o de uma mineradora em Minas Gerais”, diz Sergio Leitão, diretor-executivo do Instituto Escolhas, uma das principais organizações não governamentais dedicadas à investigação do setor no Brasil.
Com a sigla DTVMs, ele se refere às Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários, instituições financeiras autorizadas pelo Banco Central a comprar e a revender ouro de garimpo no país. “Porque paga apenas IOF [Imposto sobre Operações Financeiras], enquanto o da mineradora paga também ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços], que é muito mais alto. Compensa para as empresas que compram ouro se abastecer com o ouro das DTVMs.” Além do metal extraído de garimpos, que, pela legislação, costumam ser áreas de até 50 hectares cuja exploração deveria ser artesanal – mas na maioria dos casos não é –, existe a exploração industrial, dominada no Brasil por grandes multinacionais, como Kinross e AngloGold Ashanti. Na região do Tapajós, as mineradoras mais fortes são a inglesa Serabi Gold e a canadense Brazauro.
Itaituba se destaca nesse levantamento respondendo por 16% de todos os buracos feitos na terra por garimpeiros e mineradoras em busca de ouro no Brasil, segundo o MapBiomas. Não à toa, o município se tornou o maior arrecadador, disparado, da Compensação Financeira pela Exploração Mineral (Cfem), uma contrapartida paga à União, aos estados e municípios por aqueles que extraem riquezas do solo. Entre 2018 e 2021 houve um aumento de 475% na arrecadação da cidade, que saltou de 10,8 milhões de reais para 64,3 milhões (de 2,2 milhões de dólares para 12,4 milhões de dólares).
Em 2022, Itaituba produziu 12,4 toneladas de ouro – o que equivale a aproximadamente 3,7 bilhões de reais (740 milhões de dólares), valor oito vezes superior ao orçamento da cidade daquele ano. Ao analisarem os dados referentes à origem do minério, os pesquisadores do Centro de Sensoriamento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais identificaram que 5,6 toneladas eram legais, estavam vinculadas na Compensação Financeira pela Exploração Mineral a Permissões de Lavra Regulares. Outras 6,8 toneladas (55%) foram consideradas irregulares – 1,7 toneladas estava vinculada no papel a garimpos que nem sequer existiam no território. Vistos por imagens de satélite, os pontos no mapa que deveriam mostrar a extração do ouro abarcavam áreas de floresta densa.
Os pesquisadores e os procuradores do Ministério Público Federal do Pará começaram a perceber um enorme esquema de lavagem de ouro. Já se sabia que Itaituba concentrava a maior quantidade de Permissões de Lavra Garimpeira do país (as chamadas PLGs, ou garimpos que têm autorização do governo para operar). De todas as 5.831 permissões de lavra de ouro concedidas desde 1980, de acordo com a Agência Nacional de Mineração, 2.361 são para áreas de Itaituba – destas, 1.026 estão ativas. Nem todas, contudo, produzem o tanto de ouro que a elas é atribuído, um indício de que esses garimpos autorizados no entorno da cidade podem estar sendo usados como falsa origem do ouro extraído ilegalmente de outras áreas. Os policiais perceberam isso. Desde então, Itaituba, conhecida como “cidade pepita” – e que em tupi significa “pedra miúda” –, ganhou um novo apelido. Agora é chamada pelas autoridades de “capital da lavagem do ouro”.
“Temos dados que reforçam essa afirmação. Primeiro, Itaituba concentrava em 2021 quase 50% das PLGs [Permissões de Lavra Garimpeira] do país. Há na cidade farta disponibilidade de processos minerários para lavar o ouro – e para lavar o ouro você precisa dessas PLGs. Segundo: é a cidade que mais tem postos de compra de ouro autorizados pelo Banco Central. Nos dados que levantamos no final de 2021, Itaituba tinha 23 postos – a segunda cidade do Pará que mais tem é Novo Progresso, com cinco”, afirma o pesquisador Rodrigo Oliveira, coautor do estudo “Terra Rasgada”, sobre o avanço do garimpo no país. Os Postos de Compra de Ouro são braços “locais” das DTVMs. Quando uma Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários (ou seu posto de compra) adquire o metal, é necessário preencher uma nota fiscal dizendo em que local o ouro foi extraído. Quando essa declaração de origem é falsa, a legalização se consolida.
“Esses dados, por si só, já nos dariam a hipótese de Itaituba como capital da lavagem. Só que essa hipótese já foi confirmada por operações da Polícia Federal e do MPF. Em muitas das operações que ocorreram em Roraima [estado onde há apenas dois garimpos legalizados], Rondônia, Amazonas e também na Terra Indígena Kayapó [onde a atividade é proibida], identificou-se grande fluxo de dinheiro vindo de Itaituba”, completa o especialista, que também é servidor do MPF. Ele cita um estudo da organização não governamental WWF que analisou a área dedicada ao garimpo no município. Os pesquisadores constataram que apenas 8,4% dessa região tinha autorização do governo para trabalhar: assim, sob o aspecto territorial, mais de 90% da atividade de garimpagem em Itaituba é desenvolvida de forma ilícita.
Além de ser a lavanderia brasileira do minério, Itaituba é uma cidade cujo prefeito, Valmir Climaco (MDB-PA), é dono de garimpos e de uma fazenda onde há quatro anos policiais flagraram um avião com 580 quilos de cocaína e dois fuzis. Do mesmo partido de Helder Barbalho, Climaco alugou o avião de sua família ao governador na campanha da reeleição, em 2022. Ainda em seu primeiro mandato, Barbalho passou às prefeituras a incumbência de emitir licenciamentos ambientais aos garimpos. O prefeito de Itaituba então saiu a distribuir avais para destruir a floresta. Foram mais de 500 desde janeiro de 2017 – nunca fiscalizados, ele mesmo admitiu ao jornal O Globo.
O prefeito nega que tenha se beneficiado da exploração ilegal de ouro na região. “Não, nunca [explorei ouro ilegalmente]”, disse a SUMAÚMA/OjoPúblico. “Sou dono [de garimpos], são legalizados, mas está parado, três anos parado, porque é muita burocracia, então nós resolvemos parar [sic]. E não tá dando ouro quase [sic]. Não tá compensando tocar, não.” Sobre a cocaína flagrada em sua fazenda, ele diz: “Foram os traficantes que pousaram lá sem ordem nossa, e a gente denunciou”.
Itaituba é uma cidade de construções que se desmancham, esgoto a céu aberto, sinalização de trânsito precária, alagamentos, miséria e um assassinato a cada oito dias – mas cheia de caminhonetes 4×4 que custam o preço de um apartamento. A cidade abriga um porto que distribui para o resto do mundo os grãos produzidos no Brasil, mas os passageiros que moram lá são obrigados a pagar para atravessar as águas em velhas voadeiras (barcos do tipo lancha, com motor) superlotadas. São 123 mil habitantes, dos quais apenas 18 mil formalmente empregados, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – mas por onde se olha é possível ver homens em carros caros usando joias douradas pelo corpo, correntes penduradas no pescoço, ouro nos dentes.
Nos aviões com destino a Itaituba, as joias fazem parte da estética dos passageiros. Da janela dá para ver garimpos, toras caídas, floresta arrancada. As letras dependuradas no letreiro mambembe do aeroporto lembram que os gestores públicos dali parecem esquecer de tudo, menos de cuidar das próprias finanças. A padaria se chama “Pão de ouro”. O açougue, “Boi de ouro”. Tem a estátua de um garimpeiro na orla. Poderia ser a de uma retroescavadeira.
A cidade atrai gente de diferentes partes do Brasil para regularizar o metal extraído ilegalmente por conta do grande número de Permissões de Lavra Garimpeira que foi autorizado pelo governo, revelam investigações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal. Apesar da alta concentração de garimpos legalizados nessa região do rio Tapajós, o desmantelamento da fiscalização ambiental durante o governo Bolsonaro e o frágil marco regulatório do setor contaminaram o país com ilegalidades. E pior: como toda a produção brasileira do minério é exportada, o Brasil está enviando para o mundo ouro com sangue indígena. “100% da produção de ouro do Brasil é exportada”, assegura Leitão. “Nada fica aqui. Cerca de 25% do comércio Brasil-Inglaterra é ouro, 70% do que se exporta para a Suíça também.”
Em 2016, a Polícia Federal realizou uma operação para fechar um garimpo ilegal perto da Terra Indígena Z’oé, em Óbidos, a 635 quilômetros de Itaituba. Três garimpeiros foram presos. Mais tarde, eles disseram em depoimento que vendiam o ouro ilegal para o posto da empresa Ourominas DTVM em Santarém, a 368 quilômetros de Itaituba, sem que os atendentes questionassem a procedência do metal, conforme exige a lei. Só pediam RG e CPF, conforme detalha a Ação Civil Pública feita pelo MPF em 2019.
Os investigadores estranharam. Com a quebra do sigilo fiscal da empresa, as notas fiscais emitidas ao trio de garimpeiros foram localizadas. Os agentes constataram que o ouro retirado do garimpo clandestino em Óbidos tinha sua origem vinculada a uma Permissão de Lavra Garimpeira (ou seja, um garimpo autorizado pela Agência Nacional de Mineração) de Itaituba. Eureca!
Os garimpos mencionados nos documentos fiscais como a origem do ouro não o produziam. A verdadeira produção estava nos garimpos ilegais dentro de áreas protegidas. A partir dessa descoberta, os investigadores analisaram várias notas de compra de ouro e processos minerários da Ourominas. Ao longo da investigação, o MPF concluiu que fazia anos que a empresa adquiria ouro de lavras clandestinas. Ao fraudarem a origem do metal nas notas fiscais, até então feitas de papel e preenchidas à mão, os atendentes de Santarém transformavam o minério ilegal em legalizado.
A partir da investigação, os pesquisadores Bruno Manzolli e Raoni Rajão, da Universidade Federal de Minas Gerais, em parceria com o Ministério Público Federal, replicaram a metodologia da PF em escala nacional. O estudo “Legalidade da Produção de Ouro no Brasil” deixou clara a maneira que os empresários do ramo haviam encontrado para legalizar o minério arrancado da floresta. Os dados atraíram a atenção da comunidade científica, acadêmica, das instituições e da imprensa. A PF passou a aprofundar investigações. Bolsonaro estava abrindo a porteira para os garimpeiros. A sociedade, abrindo os olhos para isso. Mais tarde, os estudos mostraram que 96% das áreas desmatadas para minerar na Amazônia estão fora dos locais declarados oficialmente como origem do ouro.
A loja – Há câmeras instaladas na fachada da Ourominas em Itaituba. As janelas são escuras. A porta está sempre trancada. É preciso chamar um funcionário quando se quer entrar. Pela rua, alguns estabelecimentos compram o ouro clandestinamente. A Ourominas é diferente, uma Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários que tem autorização do Banco Central para adquirir e revender o minério. Por isso, só na DTVM é possível acontecer o “esquentamento” ou a “lavagem” do ouro, embora as fachadas das lojas – um conglomerado de palavras em cores vibrantes – sejam tão parecidas.
No lado de fora circulam garimpeiros de vários lugares. Tal qual os comerciantes de peças de máquinas, os especialistas em bombas de água, os mecânicos de dragas escariantes, os mergulhadores e os pilotos de avião, os garimpeiros perseguem o ouro. Ultimamente, muitos têm migrado para a Guiana, onde o forte é a cassiterita, diz um delegado federal especializado no combate a crimes ambientais, que conversou com SUMAÚMA/OjoPúblico sob a condição de anonimato.
Segundo ele, outros chegam do território Yanomami: “Os garimpeiros de Itaituba têm ligação com os Yanomami. Teve garimpeiros migrando da terra Yanomami para Itaituba, depois das operações lá. Os donos de garimpo têm negócios em ambos os estados, às vezes em várias outras regiões ao mesmo tempo”, ele diz. Até a companhia aérea Azul, lembra, lançou, em dezembro de 2022, um voo que conecta Boa Vista a Itaituba. “Eles [garimpeiros] nunca deixam o Tapajós.” Em Roraima, não há como “esquentar” o ouro, porque não existe Permissão de Lavra Garimpeira. Procurada por meio de sua assessoria de imprensa para informações sobre estudos da viabilidade do voo e fluxo de passageiros, a Azul disse que o voo não é direto, mas com uma conexão em Manaus.
O ouro costuma chegar bruto à Ourominas de Itaituba, diz André, atendente da Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários. Às vezes surge amarronzado, misturado com areia e outros minerais. Os funcionários o derretem e o despejam em fôrmas de ferro, de modo que endureça em barrinhas de 50 gramas, 100, 500 ou 1 quilo. Em seguida, costumam checar a pureza e conferir o peso. Depois, emitem a guia de recolhimento da Compensação Financeira pela Exploração Mineral (Cfem), declarando de onde o ouro foi retirado. É nesse momento, segundo investigações da Polícia Federal, que a lavagem acontece. O campo reservado à lavra de origem do ouro é falsificado.
Os policiais comprovaram o método ao descobrir que a Ourominas de Santarém fazia uso de um banco de dados com números de Permissões de Lavras Garimpeiras regulares para fraudar as notas fiscais. Elas eram utilizadas como origem do ouro, mas o metal tinha sido extraído em outro lugar. O vendedor que ia à DTVM não precisava se dar ao trabalho de providenciar uma origem. A própria loja preenchia a formalidade e consumava a fraude, conforme detalha uma Ação Civil Pública do MPF. “Geralmente, o garimpeiro, quando a área [PLG] não é dele, ele está em cooperativa. Cooperativa X. Aí ela já deve estar cadastrada aqui, tem os dados dela…”, diz André, em Itaituba, olhando para o computador. “Era assim. Agora, como tirou a boa-fé…”
O funcionário da Ourominas em Itaituba se refere à suspensão, pelo Supremo Tribunal Federal, do parágrafo 4º do artigo 39 da lei 12.844 de 2013, que presumia a legalidade do ouro adquirido e a boa-fé do comprador. Com o avanço das investigações da PF, a pressão da sociedade civil e a declaração de emergência sanitária na Terra Indígena Yanomami após denúncia de SUMAÚMA, em janeiro de 2023, o ministro Gilmar Mendes suspendeu esse parágrafo da lei em abril.
“Por conta desse artigo, tínhamos um mecanismo que institucionalizava a lavagem de recursos ao permitir que o comprador de ouro falasse que comprou ‘de boa-fé’ até que se prove o contrário”, analisa o pesquisador Rodrigo Oliveira. “De que forma isso prejudica o combate ao ouro ilegal? Eles [os compradores] davam esse argumento de que não precisariam adotar qualquer checagem da origem do ouro. E, como têm a presunção de boa-fé, em termos criminais, fica mais difícil para os órgãos investigadores provar o dolo [intenção de praticar ato criminoso]”, completa. Sergio Leitão, do Instituto Escolhas, complementa: “Na prática, esse artigo significava uma dificuldade imensa de punição [dos compradores de ouro ilegal]. Como punir quem já é santo?”.
A decisão liminar, referendada pelos outros ministros do Supremo, cita trecho de um ofício elaborado pelo Ministério da Justiça: “A presunção de legalidade na produção e de boa-fé do comprador impede a criação de mecanismos de rastreabilidade e responsabilização das DTVMs [Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários]”. Diante da dificuldade de responsabilização dos compradores, Gilmar Mendes também determinou que o governo Lula criasse “um novo marco normativo para a fiscalização do comércio do ouro, especialmente quanto à verificação da origem legal do ouro adquirido por DTVMs”, assim como medidas para inviabilizar a compra de ouro proveniente de Terras Indígenas e áreas protegidas. O caso ainda será julgado em definitivo pelo Supremo.
Poucos dias antes, a Receita Federal havia editado uma instrução normativa criando uma nota fiscal eletrônica, que começou a valer em agosto, para substituir as velhas notas em papel preenchidas pelo vendedor. Agora, os documentos antes restritos à gaveta do comprador de ouro podem ser conferidos em tempo real pelas autoridades, e os delegados não vão mais precisar gastar tempo digitalizando notas fiscais. Em junho de 2023, o governo enviou um projeto de lei com novas regras para o comércio e o transporte do ouro. Outros parlamentares fizeram o mesmo. Desde então, os projetos seguem parados na Câmara dos Deputados, aguardando votação.
Uma das soluções, diz Leitão, é a exigência de pesquisas minerárias para a liberação de permissões de lavra, de maneira que o governo possa conhecer a capacidade mineral de cada Plano de Lavra Garimpeira, evitando os recordes de produção fictícios, efeito colateral da lavagem do ouro. “Temos um bom começo, mas há muita coisa para ser feita”, diz Leitão, ao mencionar gargalos do combate ao garimpo ilegal, como o acúmulo de Permissão de Lavra Garimpeira por CPF. “O garimpo não é mais uma atividade rudimentar [como diz a lei], é empresarial. Pode até ter o pé no barranco, mas a cabeça está na Faria Lima”, afirma, referindo-se à avenida da capital paulista dominada por banqueiros e empresas de tecnologia.
“Geralmente, o garimpeiro, quando a área [PLG] não é dele, ele está em cooperativa. Cooperativa X. Aí ela já deve estar cadastrada aqui, tem os dados dela…”, diz André, em Itaituba, olhando para o computador. “Era assim. Agora, como tirou a boa-fé…”
No interior da Ourominas – que, assim como as DTVMs Fênix e D’Gold, foi alvo de investigações recentes da Polícia Federal e enfrenta batalhas judiciais – o ambiente era fresco e reservado. O ar-condicionado, ligado no máximo, emprestava a sensação de outono europeu. É uma sala ampla com um forno no fundo, como os que são usados para fazer cerâmica, que ultrapassam os 1.000 graus Celsius – só que utilizado para derreter ouro. Oito funcionários jogavam conversa fora. Um sargento da Polícia Militar do Pará, que vestia o uniforme da empresa, fazia a segurança.
Em uma mesa centralizada, um sistema de análise hidrostática, com balança, estava conectado a um computador com um software que, a partir do princípio de Arquimedes, calcula a pureza do ouro trazido pelos garimpeiros. Em outro canto há um bar recheado com garrafas de cachaça e uísque, em cuja placa se lê: “Aqui garimpeiro não paga”. No fundo, um mapa que toma toda uma parede mostra as pistas de pouso clandestinas em garimpos na região do Tapajós, Garimpo do Rato, Tabocal, Cuiú Cuiú, Japonês, Dá teu Jeito, Creporizão, Piranha. Todos ali, num mapa encomendado sob medida. À direita, em outra parede, em uma foto antiga, ampliada e enquadrada, estão os fundadores da Ourominas, Juarez de Oliveira e Silva Filho e Roselito Soares, ainda jovens, diante de uma balança e um punhado de ouro.
A foto é dos anos 1980. Uma época em que eles ainda não sabiam que sua empresa estaria entre as principais compradoras de ouro ilegal do país. Nem que seria a dona de uma das poucas mansões de Itaituba, à beira do Tapajós. Tampouco poderiam imaginar que os procuradores descobririam que 1.080 quilos de ouro comprados pela Ourominas de Itaituba entre 2019 e 2020 tiveram sua origem falsificada. Nem que Juarez acabaria deixando escapar, em depoimento à polícia, que vendeu ouro ilegal à HStern, uma das maiores joalherias do mundo, com quase 70 lojas, segundo revelou a Repórter Brasil.
Em 2021, o MPF pediu a suspensão das atividades da Ourominas, ao lado da D’Gold DTVM e da Carol DTVM, acusando-as de terem vendido mais de 4 toneladas de ouro ilegal em 2019 e 2020. As empresas podem ter de pagar 10,6 bilhões de reais (2,1 bilhões de dólares) por danos socioambientais. Mas, até o momento, só uma Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários foi suspensa com base nas investigações da Polícia Federal: em 6 de novembro, a Justiça do Pará determinou a suspensão de todas as atividades da Fênix DTVM – cujos diretores são amigos e parceiros de negócios de Valdinei Mauro de Souza, o Nei Garimpeiro, um dos maiores empresários do garimpo do Brasil e contribuidor da campanha de Jair Bolsonaro à reeleição.
Às 4 da tarde, os funcionários da Ourominas se aprumaram para encerrar o expediente. André está acostumado a organizar barras de ouro e colocá-las num avião com destino a São Paulo, onde se paga melhor. Naquela hora, contudo, lembrou apenas de guardar as barras de tungstênio nos cofres, já que não havia ouro. “É para enganar o ladrão”, diz, já que o tungstênio pesa quase o mesmo que o ouro. Enfia as mãos no bolso, as mesmas que mexem no computador bem ali sobre a mesa, onde se dá o registro do ouro.
Procurada por SUMAÚMA/OjoPúblico, a Ourominas disse que não iria se manifestar sobre fatos “já tratados” em 2016, e não respondeu às perguntas enviadas. Já a HStern afirmou que “os metais e gemas preciosos utilizados na confecção de suas joias provêm de fornecedores de excelente reputação, que trabalham segundo as regulamentações de correta extração das matérias-primas da natureza”. A empresa não se pronunciou sobre a suposta relação comercial com a Ourominas. A D’Gold disse que “opera com estritos mecanismos de compliance que impedem a compra de ouro de origem ilegal. (…) Nenhuma operação foi ou é realizada à margem da legislação vigente”, afirmou, em nota enviada à reportagem.
A Fênix DTVM disse, também em nota enviada a SUMAÚMA/OjoPúblico, que “continua plenamente apta a realizar suas operações de comercialização de ouro, inclusive no estado do Pará, onde havia sido suspensa anteriormente, conforme decisão judicial”. Segundo a empresa, a suspensão se deu em razão de “uma denúncia que uma cooperativa de garimpeiros [cliente da Fênix DTVM] estaria supostamente realizando o chamado esquentamento de ouro. (…) A comercialização da cooperativa utilizando este título minerário ocorria em conformidade com as exigências legais para garantia da regularidade da primeira aquisição de ouro, o que não indicava qualquer suspeita de que pudesse haver qualquer atividade de ‘esquentamento de ouro’ pela cooperativa”, diz o texto. Procurada por meio de sua assessoria de imprensa, por telefone e e-mail, a Carol DTVM não retornou o contato feito por SUMAÚMA/OjoPúblico.
A garimpeira – O trecho da Transamazônica entre Itaituba e o município de Jacareacanga, distante 390 quilômetros, é um risco de terra vermelha que cruza o mar de floresta. Há um vulcão inativo naquelas matas. Nunca se soube exatamente se foi sua força descomunal que, eventualmente, num passado longínquo, trouxe para a superfície tanto ouro na província aurífera do Tapajós ou se foram mesmo as colisões entre estrelas de nêutrons que despejaram meteoros dourados sobre a Terra. Sabe-se, contudo, que o ouro continua lá, entrelaçado com a espessa massa de vida que é a floresta Amazônica.
Na Amazônia, tudo é grandioso. As palmeiras são enormes. As castanheiras e as bananeiras, monumentais. Em 2001, em Itaituba, encontraram o fóssil de uma preguiça-gigante, com 6 metros de comprimento e 13 mil anos de idade. Há ruínas de civilizações antigas. E relatos de criaturas fantásticas. O Mapinguari, o pé de garrafa, garrafão, pata redonda. Uma preguiça-gigante com carapaça de tatu. Um enorme tamanduá de um olho só, aberto na testa, e com a boca na barriga. Um pajé enfeitiçado.
Em dois dias pela Transamazônica foi possível ver um grupo de mutuns, um jabuti, duas caranguejeiras, uma garça-da-mata, uma cutia, um esquilo, lagartos e borboletas de todas as cores atravessando a estrada. Parado no meio da pista, uma tatu-canastra do tamanho de um javali atrapalha o fluxo das caminhonetes dos freteiros que, por 2 mil reais (cerca de 400 dólares), carregam até 1 tonelada de mercadorias para os garimpos, invariavelmente atropelando seres vivos pelo caminho. De avião, que comporta até 500 quilos, o frete fica 3 mil reais (600 dólares). Também por isso uma garrafa de refrigerante custa 50 reais (10 dólares) no garimpo, enquanto uma de cachaça não sai por menos de 1 grama de ouro, quase 300 reais (60 dólares).
No quilômetro 1.294, um rastro de retroescavadeira avança para o interior escuro da floresta, a vegetação amassada pelo peso do aço. Em Itaituba, a mata é menos temida que os homens. A garimpeira Marinês Feitosa, 54 anos, sabe disso. “Já vi venderem uísque até por 5 mil reais [1.000 dólares] no garimpo”, diz ela. “Tem garimpeiro que é a imagem do capeta. Esses dias mesmo, dia 1º [de outubro], o cara meteu a faca no outro bem aí”, conta, apontando para um banco do lado de fora do restaurante. “A faca entrou no peito e saiu pelas costas. O homem acabou de morrer do outro lado da rodovia.”
Revoltado com a cena, o garimpeiro Chico, namorado de Marinês, berrou: “Tá maluco, rapaz?! Espere que já vem o teu”. E correu para buscar seu revólver no quarto, mas Marinês já estava lá de porta trancada. “Aqui você não entra”, disse pra ele. Nem precisou. Minutos depois, ouviram-se tiros. Um amigo do morto sacou a arma e atirou na cabeça do esfaqueador. “Chegou e falou: ‘Tu quer matar, é? Tu acha que só tu é macho?’. E sapecou a 20 nele. Pipocou na mesma hora”, diz Marinês. Os dois corpos ficaram por 24 horas na frente do restaurante, do outro lado da estrada, onde agora deitam os cachorros. O Instituto Médico Legal nunca apareceu para levá-los. Os moradores tiveram de se encarregar do traslado para a cidade.
Dona do restaurante Amigo do Garimpeiro, às margens da Transamazônica, um entreposto antigo usado por garimpeiros do Tapajós, Marinês é uma das pioneiras na região. Chegou em 1982, aos 12 anos. “Fui criada no garimpo e criei meus filhos no garimpo.” Nascida em Marabá, ela cresceu em Itaituba e, mais tarde, mudou-se para o vilarejo de casas de madeira, onde vive até hoje. Ela limpa as mesas, serve o almoço e aluga quartinhos que dão abrigo a viajantes, Ribeirinhos, cozinheiras, caminhoneiros, mecânicos, prostitutas, pistoleiros, estrangeiros, foragidos da Justiça… “Aqui já passou de tudo”, diz.
Ela também tem dois garimpos e compra ouro. “No meu balcão, pago 220 [o grama]”, conta. “Lá na cidade vendo a 250. Tenho que pagar barato, você nunca sabe se o ouro vai ser apreendido pelo caminho.” De todo o minério que um dia deixou a bacia do Tapajós nos últimos 65 anos, muito decolou da pista de pouso que fica do outro lado da rodovia, a 30 metros do restaurante. Conhecido como “km 180”, ou apenas “180”, o lugar é cercado por trilhas tortuosas que levam às feridas abertas na floresta pelo garimpo. Na cidade, a redondeza é conhecida pela qualidade do metal. “O teor de lá é bom, dá 93, dá 95, 92, 94 [por cento]”, diz um comprador de Itaituba. Quando chega a 99%, é considerado puro, o chamado “ouro mil”, de 24 quilates.
“Aqui dava uns oitenta voos por dia”, calcula Chico, ao rememorar como era a pista três anos atrás. “Mesmo depois da pandemia ainda deu muito voo aí. Depois começaram a queimar, queimar, queimar [retroescavadeiras], aí não tem mais para quem puxar [levar cargas em aviões]. Era voo demais, agora tá muito pouco. A maior parte do povo tá parado.” Enquanto conversa, dois aviões decolam da pista.
Um caminhão que carrega uma retroescavadeira passa. Uma caminhonete cheia de equipamentos para garimpos, com uma antena Starlink, a internet do superbilionário Elon Musk, amarrada ao teto, acelera e some. A poeira da estrada encobre as folhas das árvores, a floresta fica alaranjada. O movimento diminuiu, mas nunca parou. “Perto do que rodava aí tá uns 50% mais parado, mas a gente tá trabalhando”, diz Luizinho, 31 anos, que tem uma borracharia “no 180” e um garimpo a 35 quilômetros dali. “Tamo mexendo devagarinho. Escondido. Só com quatinha [motor que bombeia terra dos barrancos molhados para um carpete onde o ouro fica preso]. Não tem mais como mexer com escavadeira. Os que tão mexendo trabalham mais é de noite. É mais com o bico-jato [espécie de mangueira usada para desmanchar os barrancos] que a gente vai trabalhando agora.” Nesse método, eles apontam o jato d’água contra o barranco e sugam a lama com uma bomba.
“Queimaram minha PC também”, diz Luizinho, ao mencionar o termo que os garimpeiros usam para chamar as retroescavadeiras. “Era de um amigo meu, eu trabalhava nela. Aqui na região praticamente não tem mais [retroescavadeiras], e se vier outra onda [de operações de fiscalização], vai zerar. As que tinham já tombaram. Afeta tudo. O movimento aqui [na borracharia] até que estava bom, depois disso aí… Agora tá começando a melhorar de novo, mas se vier outra onda aí para tudinho.” No garimpo, Luizinho trabalha na companhia de três subordinados, alguns dos quais seus familiares. “Eles ganham 30% do barranco. Se deu 100 gramas, é 30% pros três, 10% para cada.”
Marinês também perdeu uma retroescavadeira. Foi em 2020. “Perdi mais de 2 milhões [de reais]”, ela conta. “Queimaram quadriciclo, rancho, freezer, um radioamador, a oficina, e minha PC, com 4.500 horas, uma Caterpillar, dei 1 milhão e 90 mil nela. Só uma máquina de solda que comprei foi 350 mil.” Dinheiro que fez com o garimpo. “Já encontrei 1 quilo, 2 quilos de ouro, 5…” Segundo o Instituto Escolhas, um garimpo de baixão [aberto nas margens dos rios ou em áreas alagadas e igarapés] com 18 garimpeiros, duas cozinheiras e uma retroescavadeira tem lucro estimado de 343 mil reais (68,6 mil dólares) por mês.
Os destroços continuam até hoje no meio da floresta. Agora Marinês trabalha com duas das três retroescavadeiras que tinha. A poucos quilômetros dali, em agosto de 2023, um garimpeiro foi morto por um agente do Ibama, o que causou grande revolta. Mesmo antes, durante as operações na Terra Munduruku, um policial não conseguiu nem comprar água. “A moça disse que quem vendesse água aos policiais seria morto”, conta um delegado federal. Garimpeiros, assim como grande parte da população da região, costumam ver a si mesmos como trabalhadores e revoltam-se contra agentes da repressão, dizendo que são “brasileiros tentando alimentar suas famílias”. É uma verdade apenas parcial, já que a maior parte do lucro originado na ilegalidade e no sacrifício da floresta fica na mão de grandes empresários, alguns deles fora do Brasil, com avanço das grandes organizações do crime organizado em algumas áreas, como ficou evidente na Terra Indígena Yanomami.
Marinês guarda sua própria indignação. “Não tenho energia por causa dessa maldita reserva [área de proteção perto de seu restaurante]. Não passa nada aí. Não pode caçar, não pode pescar, não pode fazer nada aí”, diz. Ela gasta 700 reais (140 dólares) por dia para alimentar os dois geradores do seu comércio com diesel, 26 mil reais por mês (5,2 mil dólares). “Quando nasci, meus avós já eram garimpeiros. Tenho 54 anos, quantos anos se passaram? Por que agora, de dois anos pra cá, vai acabar o mundo? Vai acabar as reservas? Vai estar poluindo? Então quer dizer que antigamente não poluía? Agora tá poluindo? Ah, para. Para de brincadeira, meu amigo. Tu tá com palhaçada.”
Ela prefere não perceber que o aumento nos rasgos da floresta se deu justamente nos últimos anos. Depois de 2012, quando chegaram as primeiras PCs ao Tapajós, o tempo de abertura de um garimpo, que era de um mês, foi encurtado para uma semana, segundo dados do Instituto Escolhas. Um garimpo de baixão com 21 funcionários e produção média de 3 quilos de ouro por mês consome 1,1 mil litros de diesel por dia. Para cada grama de ouro, 11 litros de diesel viram fumaça. Para cada quilo de ouro são necessários 3 quilos de mercúrio. Para retirar 1 grama de ouro é preciso extrair 1 tonelada de terra.
Ao multiplicar pela produção anual, o que emerge é um apocalipse ambiental. Seguindo essa conta, só em Itaituba 12,4 milhões de toneladas de terra foram retiradas em 2022, o mesmo peso da quantidade de soja importada em maio de 2023 pela China, considerado um mês recorde. A quantidade de terra arrancada fez surgir ilhas antes inexistentes ao longo do rio Tapajós. Marinês não se importa com isso. Mas ao mesmo tempo que tem máquinas que moem a floresta em segundos, cuida de um delicadíssimo jardim de plantas. “Você não tem orquídea em casa?”, pergunta a uma vizinha, enquanto admira suas flores perto de onde decolam os aviões do garimpo.
A cidade – O garimpeiro Thairon Fuentes e sua mulher, a cozinheira Ana Maria Contreras, deixaram seus filhos na Venezuela. Estão há menos de um mês no Brasil. Aos 31 anos, Thairon costumava trabalhar num garimpo, até os militares do ditador Nicolás Maduro expulsarem todos que não usavam farda. Ele e a mulher encontraram emprego no restaurante de Marinês. Ana Maria cozinha. Thairon começou a trabalhar nos garimpos da dona do restaurante. Muitos forasteiros latino-americanos passaram por ali, garante Marinês. Vez por outra, em Itaituba, é possível ouvir alguém falando castelhano, ou a língua crioula da Guiana. Thairon passou por lá. “Tem muito, muito garimpeiro brasileiro na Guiana”, diz o venezuelano. “Muitos já trabalharam aqui no Tapajós.”
O professor Maurício Torres, da Universidade Federal do Pará (UFPA), concorda: “É comum em Itaituba um garimpeiro ter um irmão que está garimpando nas Guianas. Garimpeiros circulam”, explica. “Em Itaituba, é difícil encontrar um taxista que não seja garimpeiro.” Segundo ele, a maioria é de camponeses pobres, embora muitos tenham “bamburrado”, como se diz nos garimpos quando alguém enriquece com ouro. “Hoje, esses garimpeiros pobres acabam cooptados por empresários com maior poder aquisitivo”, enfatiza a procuradora Thais Medeiros, do MPF de Santarém/Itaituba.
No último boom do ouro, durante a pandemia, o ourives Cleidson Oliveira, de 40 anos, chegou a ganhar um salário médio de 11 mil reais (2,2 mil dólares). Naquela época, confeccionou até um colar de 170 gramas. Hoje, recebe 3,5 mil reais por mês. “Antes das operações, chegava bem mais ouro pra gente trabalhar”, lamenta. Assim como o dentista Hélio Soltoski, o único com diploma no Creporizão, um vilarejo garimpeiro perto de Itaituba, que deixou de implantar dentes de ouro desde então. Há oito anos na região, ele diz ter realizado mais de mil implantes – inclusive em clientes que pediram a troca de dentes saudáveis pelo brilho do metal.
No cemitério antigo de Itaituba, um coveiro conta que são enterrados oito corpos por dia. “Vêm alguns [do garimpo]”, diz. Outros morrem pelas ruas. Em 2022, por exemplo, a vereadora Odinea Peres (PP-PA) foi gravada, em um vídeo disponível no Facebook, ameaçando de morte um blogueiro. “Tu vai morrer.” No fim de setembro, Hernanes Alencar, conhecido como Zeca Tatu, o blogueiro, foi morto com tiros na cabeça quando andava de moto. A família tenta entender por que o delegado do caso apreendeu o celular do cadáver e não o devolveu até hoje. A Polícia Civil do Pará não esclareceu a conduta do delegado nem respondeu aos questionamentos enviados pela reportagem. Apenas se limitou a informar que “o inquérito que investiga o caso foi concluído dentro do prazo legal e remetido à Justiça”. A vereadora Odinea Peres foi procurada por SUMAÚMA duas vezes, por telefone e mensagem. A reportagem não foi atendida e não recebeu nenhuma resposta.
Na Câmara Municipal de Itaituba, um quadro no plenário mostra toras de madeira serradas, um Indígena, uma onça, um boi, um seringueiro, um garimpeiro com sua bateia e um avião do garimpo a decolar. Uma grande mescla entre crimes ambientais e a floresta. A vereadora Odinea se aproxima de uma eleitora durante uma das sessões: “Para eu fazer minha faculdade, colei demais, viu?”. Minutos depois, durante a votação para definir que nome receberia uma quadra poliesportiva, ela confessa que detesta ler. “Não gosto, nunca gostei.” Um parlamentar vai então à tribuna anunciar que a Terceira Guerra Mundial está para chegar. Os quinze vereadores gastam o tempo discutindo nomes para obras, algumas delas inacabadas. Uma sessão comum na Câmara de Itaituba.
A história – Dez mil anos atrás já havia pessoas vivendo onde hoje é Itaituba. Dezenas de povos indígenas habitaram a região, os Maué, os Munduruku e muitos outros. Lá ficava a Mundurukânia, terra da então poderosa etnia de guerreiros. Mais tarde, em 1835, veio a Cabanagem, a revolta e a miséria ribeirinhas versus as forças do Império português, que dirigia o Grão-Pará. A cidade foi fundada em 1856 por um militar maçom. Veio a febre da seringa, depois o mercado de pele de onça e de outros felinos. Nos anos 1950, com a borracha em baixa, os seringueiros passaram a adentrar a floresta em busca de ouro. No livro Ocekadi: Hidrelétricas, Conflitos Socioambientais e Resistência na Bacia do Tapajós, o professor Maurício Torres conta que, em 1958, um seringueiro chamado Nilçon Pinheiro (também grafado como Nilson) encontrou jazidas pela primeira vez na região, na foz do rio das Tropas.
Em 2008, a professora e pesquisadora Regina Lucirene, fundadora do Museu Aracy Paraguassú, em Itaituba, recebeu de um seringueiro em seu leito de morte um caderno empoeirado. Eram os relatos de um piloto de avião sobre a época – 1968 em diante – em que voou para os garimpos. Até o fim de outubro, o documento estava esquecido num armário do museu – perto de fotografias emblemáticas da cidade, como a que mostra um avião que aterrissou sobre outro, numa amostra de quão movimentado era o “aeroporto dos garimpeiros” nos anos 1980. Ao longo de 137 páginas, o homem misterioso – não há assinatura no livro – conta aventuras que viveu na floresta e outras tantas que ouviu de companheiros do garimpo, muitas vezes por meio da frequência de rádio 122,5, usada “por todos os aviões que voavam na região dos garimpos do Tapajós’, segundo o livro. Um trecho narra a história da família de Nilçon Pinheiro, que em 1956 recebeu uma indenização do Conselho Nacional de Petróleo em troca das terras que tinha no Amazonas. Com o dinheiro, eles partiram numa caravana de 32 pessoas rumo ao Pará, em busca de ouro. Muitos adoeceram, outros desistiram. Insistente, Nilçon quis ficar mesmo após a decisão do pai de abandonar a expedição e se mudar para Manaus.
Eram tempos conturbados. O presidente Getúlio Vargas tinha se suicidado em 24 de agosto de 1954. Semanas antes, o Brasil foi surpreendido pelo atentado da rua Tonelero, em Copacabana, quando um major da Aeronáutica morreu. Inflamados, militares se rebelaram contra o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961). Amotinaram-se na base aérea de Jacareacanga, cidade a 390 quilômetros de Itaituba, também nas margens do rio Tapajós. A chamada Revolta de Jacareacanga tinha recém-acabado quando Nilçon chegou ao município num barco a remo.
O seringueiro soube que o comandante da base aérea, um tenente durão, faria aniversário naquele dia. Sem combustível para as voadeiras nem dinheiro para continuar a jornada de caça ao ouro, foi à casa do militar na companhia dos amigos. Além de garimpeiros, eles eram músicos. Trompetista, Nilçon ajudou a animar a festa do militar em troca de gasolina. O combustível doado pela Força Aérea Brasileira ajudou sua equipe a achar 46 quilos de ouro em quatro meses. Assim, segundo o livro, começou a exploração de ouro no Tapajós.
A pesquisadora Regina Lucirene conta que Nilçon levou a fama, mas que o primeiro a achar ouro foi Raimundo Ramos, um funcionário público que morava em Jacareacanga. Conheceram-se na cidade. “Ele [Raimundo] tinha achado ouro no local [rio das Tropas]. Pegou uma lata de leite Ninho e colocou dentro”, conta a museóloga. A lata, segundo ela, foi entregue a Nilçon Pinheiro em troca de redes e mantimentos. Anos depois, em 1983, na tentativa de esvaziar o garimpo de Serra Pelada, que começava a ganhar fama internacional, o governo militar criou a Reserva Garimpeira no vale do Tapajós – e abriu uma estrada para isolar os garimpeiros mata adentro, a Transgarimpeira. Mais tarde, em 2006, no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e na primeira vez de Marina Silva como ministra do Meio Ambiente, a área da reserva garimpeira foi transformada na Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós, na Floresta Nacional do Crepori e em outras unidades de conservação. Os garimpeiros, contudo, continuaram lá.
O Barão – Quarenta anos depois, é sábado à noite no Creporizinho. O vilarejo fica no fim da Transgarimpeira, que começa no distrito de Morais Almeida, atravessa o rio Jamanxim e segue por 150 quilômetros. Imagens de satélite mostram a estrada cortando a imensa floresta, as feridas abertas pelo garimpo acompanhando a pista. Sete caminhões carregando toras de árvores centenárias passam pela estrada num período de três horas. A exploração do ouro nunca parou por aqui. Nem a de madeira. No primeiro semestre deste ano, segundo a Universidade Federal de Minas Gerais, Itaituba continuou a liderar a produção de ouro no país. Até junho de 2023 havia comercializado 4,8 toneladas, sendo 2,6 de origem duvidosa.
A principal rua do Creporizinho é uma fila de casas feitas de tábuas e telhas precárias, com 300 garimpeiros, todos homens, além de cerca de 20 mulheres e meninas. Quase todo mundo se embriaga, gargalha sobre motos em movimento e faz churrascos. Cada estabelecimento é um bar. Há uma dúzia de cabarés. Luzes multicoloridas e som alto em cada um. Cachorros atrapalham o fluxo. Um quadriciclo carrega cinco rapazes sem camisa, eles riem, balançando no relevo esburacado. Todos bebem. Há um grupo que cheira cocaína sobre uma mesa de sinuca, no interior de um dos precários estabelecimentos. Um garimpeiro está fantasiado de bruxa. Há jukebox tocando músicas melancólicas e batidões que fazem tremer as telhas. O Comando Vermelho está aqui, alertou um policial federal na cidade.
A 6 quilômetros dali, à beira da Transgarimpeira, o empresário Valdinei Souza, o Nei Garimpeiro, tem há 20 anos uma fazenda com um lago particular e um garimpo no quintal. Sócio e amigo do atual governador de Mato Grosso, ele é considerado um barão do ouro na região. Naquela noite, um segurança armado fazia a vigilância da porteira enquanto uma antena Starlink oferecia internet gratuita a quem passasse pela estrada. Lá dentro, uma fatia grossa de uma larga árvore serve de suporte para o gelo que garante a temperatura das cervejas. “Você pega aí hoje 100, 200 pilotos. O que esse piloto vai fazer?’, ele diz, ao reclamar da repressão estatal sobre os aviões do garimpo. “O cara tá acostumado a ganhar 40, 50, 70, até 100 mil por mês. Não pode mais voar ali na região. Aí vai pra cidade, não tem o que fazer, o que acontece? Vem o crime [narcotráfico] oferecer serviço pros caras, porque são bons pilotos, acostumados a voar pesado, a voar baixo, com avião velho, e a operar nas pistas impossíveis de operar.”
Um mês depois de falar com SUMAÚMA/OjoPúblico, Nei Garimpeiro foi alvo de uma operação da Polícia Federal por ter adquirido de contrabandistas, em seu nome e em nome de empresas das quais é sócio, segundo as investigações, mais de 300 quilos de mercúrio. Procurado novamente, o empresário se defendeu: “Comprei mercúrio de uma empresa que era idônea e tinha autorização do Ibama e da PF para vender mercúrio. Eu e minhas empresas tínhamos autorização para usar mercúrio e comprar desta empresa, não fizemos nada que não fosse legal. Todas nossas compras foram com notas fiscais e pagamentos de conta-corrente para conta-corrente da empresa”. Segundo ele, no Brasil, quase todos os garimpeiros usam mercúrio. “Isso é mais ou menos uns 10 mil garimpos pelo Brasil. Talvez seja até o dobro: 99,5% usam mercúrio sem nota e sem regularização.”
O metal, altamente tóxico, escorre dos garimpos e alcança os rios. É absorvido pelos peixes. Adoece populações. E há fortes indícios de que está provocando deformidades em crianças Munduruku. Os garimpeiros não costumam falar sobre isso.
Esta reportagem faz parte da investigação jornalística Las Rutas del Oro Sucio [As rotas do ouro sujo], liderada pela Red Transfronteriza de OjoPúblico em cinco países amazônicos e da qual SUMAÚMA é parceira
Reportagem e texto: Bruno Abbud. Colaborou: Ana Magalhães
Edição: Ana Magalhães
Fotos: Michael Dantas
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Infográficos: Rodolfo Almeida
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas e Erica Saboya
Coordenação de fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum
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