As Mineradoras. A Taxa de Compensação. A Sonegação. O Prejuízo de R$ 35 Bilhões



 O rombo da sonegação fiscal causada por mineradoras na taxa de compensação devida no Brasil pode ter alcançado cerca de R$ 35 bilhões somente nos últimos 5 anos, de acordo com os dados de arrecadação da CFEM, em estimativas conservadoras. Levantamentos da Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite), do Tribunal de Contas da União (TCU) e da Controladoria-Geral da União (CGU), citados em nota técnica da Agência Nacional de Mineração (ANM), apontam que a cada R$ 1 arrecadado em CFEM (Compensação Financeira Pela Exploração Mineral), R$ 1 é sonegado.

A sonegação acompanha o fluxo variado de arrecadação da taxa, que segue os lucros multibilionários do setor mineral. Em 2023 e 2022 a CFEM ficou na casa dos R$ 7 bilhões, 2021 foi o pico, com R$ 10,2 bilhões, em 2020 foram R$ 6 bilhões e em 2019 R$ 4,5 bilhões. Assim, de 2019 a 2023, mineradoras podem ter sonegado cerca de R$ 35 bilhões em CFEM. Mas o cenário é ainda pior. Milhares de processos de cobrança podem prescrever, com rombo adicional de R$ 20 bilhões. 

Em 2022, somente 13 mil processos minerários existentes no Brasil recolheram CFEM, dos 35 mil existentes. No mesmo ano, apenas 17 mineradoras foram fiscalizadas. A atual equipe da CFEM na ANM conta com solitários 4 servidores e um chefe para fiscalizar a taxa em todo o Brasil.

Para Waldir Salvador, consultor de Relações Institucionais e Econômicas da Associação de Municípios Mineradores do Brasil (AMIG), “a sonegação da CFEM é uma questão cultural, é uma indecência, é brutal”.

“As pequenas mineradoras não pagam. As empresas de faturamento médio reclamam que a burocracia do país é muito grande, começam sonegando e depois pagam o que elas acham que devem pagar, o que não inviabiliza o negócio. E as grandes fazem engenharia tributária e têm uma prática recorrente de interpor recursos dizendo que não concordam com a forma que a ANM e a lei impõem”, afirma Salvador.

A CFEM foi instituída pela Constituição de 1988 e regulamentada em 1989, quando a mineração brasileira cresceu, assim como a demanda internacional. Mais de 3 mil municípios brasileiros recebem CFEM, entre cidades produtoras e afetadas. Outros 2 mil municípios recebem por serem limítrofes. A taxa, portanto, chega a quase todo o país. Para Salvador, “todas as mineradoras têm a total consciência de que não há fiscalização”. “E se não há fiscalização, não se paga”, afirma, reiterando que esse procedimento já se tornou uma cultura na atividade das mineradoras.

Sucessora do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), a ANM é responsável pela fiscalização e acompanhamento de todos os processos minerários no país. Segundo Daniel Pollack, superintendente de Arrecadação e Fiscalização de Receitas da ANM, o quadro de servidores é o menor desde 1967, quando foi editado o Código de Mineração: “Apesar de serem 2.121 cargos efetivos para servidores, temos em atividade menos de 700. É um quantitativo aproximadamente 42% menor do que a agência tinha em 2010, quando realizou o último concurso geral para todas as áreas”.

Em contrapartida, nesse período, a mineração brasileira teve um salto quantitativo enorme, batendo recordes de lucro nos últimos anos. Atualmente, existem mais de 12 mil processos de cobrança de CFEM, com um potencial de prescrição que atingem os R$ 20 bilhões já citados. “Possuímos hoje aproximadamente R$ 1 trilhão de base de cálculo não fiscalizado nos últimos 10 anos, que é o prazo decadencial”, afirma Pollack. 

“Ao longo do tempo a capacidade de análise foi menor do que a de novos processos, então, hoje, com o quantitativo atual de servidores, sem novos processos, demoraria 60 anos para analisar todo esse passivo.” Análise do TCU constatou carência na área de tecnologia da informação, elevada sonegação com possibilidade de lavagem de dinheiro e distribuição inadequada do valor integral da arrecadação aos Estados e municípios, entre outros. “Curioso é que, enquanto a mineração brasileira foi crescendo, a agência foi minguando na mesma proporção. A quem interessa isso? Só a um lado”, afirma Salvador.

A Agência Nacional de Mineração (ANM) vive sua pior fase desde sua criação, em 2017, com falta de estrutura, orçamento, déficit de pessoal, sistemas tecnológicos e bases de dados ineficientes. A precariedade e a incapacidade de fiscalização favorecem a sonegação da CFEM e causam prejuízos bilionários aos cofres públicos. 

A nota técnica da ANM, de maio de 2023, advertia para a “possibilidade real de iminente colapso na fiscalização, arrecadação e distribuição de receitas da ANM”. “Esse cenário nos traz os números que temos hoje de apenas quatro servidores na equipe, além do chefe para fiscalizar a arrecadação da CFEM dos mais de 35 mil processos minerários ativos em todo país”, afirma Pollack.

Desde sua criação, a ANM ganhou 17 novas atribuições, com carga de trabalho ainda maior, enquanto a demanda em vários setores só aumentou. Especialmente frágil é o setor de arrecadação, no qual ocorreu uma diminuição em dois terços da estrutura organizacional da extinta Diretoria de Procedimentos Arrecadatórios (DIPAR), do então DNPM, seja em cargos comissionados ou número de servidores efetivos nos últimos 13 anos. 

“A ANM fez um pedido de concurso para 1.003 vagas ao Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI) em 09/05/2023, mas não houve até agora nenhuma análise por parte do MGI.O tempo vai passando e a situação fica cada vez mais alarmante”, diz o servidor. Salvador completa que “sem a estruturação da ANM, é impossível acabar com a sonegação no Brasil”.

Pollack cita o exemplo de que, “dos 41 candidatos aprovados e convocados nos concursos de 2006 e 2010 para o cargo de Especialista em Recursos Minerais, na especialidade de auditoria externa que teriam lotação na área de arrecadação, houve aproximadamente 70% de evasão sem reposição, além de uma quantidade significativa de aposentadorias”. 

O quadro levou a uma greve de 90 dias por servidores da ANM em 2023. Embora não tenham conseguido a aprovação de novo concurso até o momento, os servidores da ANM fizeram um acordo com o MME e alcançaram a equiparação salarial com outras agências reguladoras, pleito antigo, em MP publicada este mês.

Para Salvador, a CFEM já nasceu natimorta. “Foi criada sem orçamento, sem pessoal, sem estrutura. É um deboche”, critica, acrescentando que o governo brasileiro tem sido omisso há três décadas e o atual “faz teatro”. A CGU, em relatório, apontou diversas irregularidades cometidas pela ANM, incluindo “baixa formalização e padronização dos procedimentos de planejamento, execução, comunicação e registro dos resultados das fiscalizações, bem como falta de revisão e supervisão em todas as etapas dos trabalhos realizados”.

Bruno Milanez, professor da Universidade de Juiz de Fora e pesquisador do grupo interdisciplinar Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS) afirma que um dos grandes problemas da CFEM é ser baseada na autodeclaração. Cabe, então, à ANM fiscalizar tanto o volume de produção informado quanto a CFEM paga. Isso, obviamente, não ocorre devido à falta de estrutura da agência. 

“As mineradoras se aproveitam dessa desestruturação das agências reguladoras para não pagar. E não pagam mesmo. Com essa autodeclaração de o quanto que se produz, o preço pelo qual se vendeu e o cálculo do montante, virou essa indecência de se pagar o que quer e como quer”, critica Salvador.

Em 2022, por exemplo, apenas 17 empresas de mineração foram fiscalizadas em um setor que possui milhares de empresas. “Como a ANM faz o cruzamento de dados e a validação desses dados fornecidos pelas mineradoras? A ANM toma como verdade o que é declarado ou há um trabalho de malha fina e cruza dados com a Receita Federal? Como a ANM se protege de práticas de sonegação?”, questiona Milanez. 

Hoje, a Receita Federal entende que é necessária alteração legislativa para conceder acesso às notas eletrônicas do passivo da CFEM e a base de dados da ANM é precária. Pollack nota que “infelizmente, com a falta de acesso às notas fiscais eletrônicas pela ANM, pela reduzida equipe e capacidade de fiscalização, a ANM não tem condições de um efetivo combate à prática de sonegação ou pagamento a menor da CFEM”.

O professor Ricardo Machado Ruiz, do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Faculdade de Ciências Econômicas (Cedeplar), da UFMG, também destaca a falta de articulação entre a Receita Federal e a ANM na cobrança da CFEM. “Todo mundo sonega. A CFEM tem que ser cobrada pela ANM e tem que ser paga, porque está gerando uma quantidade de processos e disputas que fica estocando CFEM sem repasse aos municípios, que não recebem”. Para ele, isso ocorre porque não há uma multa punitiva o suficiente para receber das empresas as disputas tributárias entre elas, a ANM e a União. 

“Isso gera uma questão de que a CFEM não é efetivamente paga.” Além da equipe de fiscalização insuficiente da ANM, no âmbito jurídico, são seis servidores e um chefe. “Seria necessário pelo menos mais de 100 servidores para diminuir o passivo, atender a demanda corrente e mais de 200 servidores para atender satisfatoriamente a demanda de fiscalização que não é realizada”, diz a nota técnica da ANM.

Com a sonegação da CFEM, o repasse aos estados e municípios fica comprometido. Além disso, o sistema e a base de dados da ANM são ultrapassados – são feitos de forma manual e sem cruzamento de dados com o Banco do Brasil. Isso compromete a confiabilidade nos valores repassados. Por lei (13.540/2017), os recursos da CFEM são distribuídos da seguinte forma: 15% para o Distrito Federal e os estados onde há produção mineral; 15% para os municípios e DF quando afetados pela atividade, mesmo sem a produção ocorrer em seus territórios; 60% para o DF e municípios onde ocorre a produção e 10% para União. 

A regulamentação depende de decreto presidencial, que pode alterar a distribuição dos valores arrecadados. No ano passado, a ANM lançou a Tomada de Subsídios nº 3 para ouvir a sociedade civil e recolher subsídios para a normatização da CFEM. A norma deverá ser publicada este ano. Enquanto isso, a regulamentação da CFEM e sua distribuição a estados e municípios tem causado debate no Congresso, tanto na forma discricionária da aplicação dos recursos como base de compensação às perdas de arrecadação causadas pela Reforma Tributária. 

Pollack explica que, por se tratar de bilhões de reais anuais, “logicamente existe uma série de interesses de alteração das alíquotas incidentes, regras de distribuição e, eventualmente, mudanças que acabam afetando a atuação da própria ANM e o setor como um todo”.

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