Uma reunião inédita aconteceu na sala 605 da sede da Procuradoria Regional da República, no Rio de Janeiro. Na manhã de sexta-feira, dia 27, advogados do Banco do Brasil se encontraram com representantes de dois ministérios – Direitos Humanos e Igualdade Racial -, historiadores e com procuradores a fim de discutir em um inquérito civil público o papel do Banco do Brasil e de seus acionistas na escravidão e no tráfico negreiro durante o Império (1822-1888). Trata-se da primeira investigação deste tipo no Brasil.
Ao término do encontro, foi feita uma ata à qual o Estadão teve acesso e na qual ficou estabelecido: o banco terá 15 dias úteis, contados a partir de hoje, para se manifestar sobre o reconhecimento de sua participação no tráfico de pessoas escravizadas e na escravidão, bem como sobre o pedido de desculpas, e se tem interesse em construir um plano de reparação em relação ao período.
Ao mesmo tempo, os historiadores envolvidos no caso deverão apresentar, até o dia 31 de novembro, as teses já publicadas sobre o tema para que o banco tome conhecimento dos documentos por meio do Ministério da Igualdade Racial. Por fim, o banco deve apresentar as medidas que pretende adotar sobre o tema, bem como sobre o financiamento de pesquisas sobre o passado e como fazer a inclusão racial em sua estrutura. Por fim, o MPF pediu uma reunião com a presidente do banco, Tarciana Medeiros. Uma audiência pública deve acontecer no dia 18 para tratar do tema.
Os procuradores pretendem “buscar mecanismos de justiça que assegurem a eventual reparação necessária aos descendentes dos negros africanos escravizados, em todos os âmbitos”. Para o MPF, embora a reunião tenha sido um avanço, há ainda obstáculos para o acordo. “A reunião foi histórica, pois representou a oportunidade de os ministérios, o MPF, os pesquisadores e a sociedade civil juntarem esforços para enfrentar esse tema”, afirmou o procurador da República Júlio José Araújo Junior. Ele prosseguiu, afirmando: “É lamentável, porém, que o Banco não tenha dado a devida importância ao tema, pois a presidente não compareceu e os presentes não assumiram qualquer compromisso concreto pra avançar na discussão. Ao contrario, eles insistiram na ideia de que o banco já faz muito em torno do tema, esquecendo-se que o reconhecimento da participação do tráfico e na escravidão deveria ser constitutivo de uma nova relação do banco com a sociedade brasileira. Espero que o tema avance nos próximos 15 dias”.
O Estadão procurou o Banco do Brasil. Em um longo posicionamento, a instituição afirmou que “o BB destaca – com veemência – que lamenta profundamente esse infeliz capítulo da história da humanidade e da nossa sociedade, com efeitos de um triste legado até os dias atuais”. “A escravização por centenas de anos causou danos irreversíveis às pessoas escravizadas à época e aos seus descendentes; portanto é um momento da história que deve ser lembrado e discutido.”
Em um outro documento, – com 14 páginas -, entregue ao MPF, o Banco do Brasil afirmou que, “no exíguo prazo e dadas as condições do acervo pesquisado, a exploração em curso no Arquivo Histórico do Banco do Brasil alcançou documentos datados de até 1858, sendo possível afirmar que, pelo tipo de informações constante desses documentos, são escassos os subsídios acerca da perspectiva abordada nos autos”.
O documento afirma ainda que “ao mesmo tempo, a pesquisa em curso (do banco) revela aspectos a serem considerados em uma revisão histórica que venha a ser realizada, como a possível relação do banco com sujeitos os mais diversos, inclusive abolicionistas de destaque no cenário nacional, que também podem ter sido integrantes de seu quadro de acionistas”.
O Banco listou alguns desses abolicionistas. Entre eles estariam Rodrigo Augusto da Silva, autor da Lei Áurea; Afonso Pena; advogado, político, presidente do banco e do República; José Maria da Silva Paranhos, o visconde do Rio Branco; a Condessa de Barral, preceptora das princesas imperiais; o primeiro-ministro Lafayette Rodrigues Pereira, durante o 2º Império e, por fim Tereza Cristina, imperatriz do Brasil.
Para o banco, “não é a questão de existir qualquer conexão, ainda que indireta, entre suas atividades e escravizadores do século XIX, que define seu compromisso com o combate à desigualdade étnico-racial, mas o simples fato de ser uma instituição da atualidade, que, como as demais instituições públicas e privadas, desenvolve suas atividades no âmbito de uma sociedade que guarda resquícios da escravidão”.
Por fim, a defesa do BB afirmou que fechou a torneira para lavouras com mãos de obra escravizada e financiou as que tinham mão de obra assalariada e convocou outros atores da sociedade para o debate. “O triste legado da escravatura convoca todos os atores sociais contemporâneos a agir para a promoção da igualdade étnico-racial, a contribuir por meio de ações concretas, como as que o Banco já desenvolve de modo pioneiro voluntário e destacado, e que serão exemplificadas adiante”.
O banco ainda afirmou ser importante registrar que, “independentemente da identificação ou não de qualquer vínculo entre o Banco do Brasil e acionistas ou tomadores de crédito supostamente envolvidos com a escravidão e o tráfico ilegal de pessoas escravizadas, nos termos sugeridos nos autos do inquérito civil – o que, ressalta-se desde já, não implicaria necessariamente ilegalidade praticada pelo banco à época, ou possibilidade jurídica de responsabilização do BB de hoje”.
O Banco alega que não podia tomar decisão na reunião sem acesso aos documentos históricos. “O Banco age e tem interesse em continuar a agir em prol da promoção da igualdade étnico-racial, bem como em contribuir, com a disponibilização de acesso às suas informações, para a busca da verdade histórica acerca de um passado que, conforme os representantes, mostra-se ‘comum a instituições seculares, mas igualmente a todos os brasileiros e brasileiras’, devendo ser promovido ‘a lugar de memória e reflexão histórica’”.
Em seguida, o banco passou a listar suas iniciativas em prol da igualdade racial. Em 27 de julho, o BB e o Ministério da Igualdade Racial celebraram um protocolo de intenções para combate e superação do racismo e promoção da diversidade e da equidade.
“Prevemos uma cooperação para fixar diretrizes e ampliar ações afirmativas de raça e gênero com inclusão e valorização das mulheres negras no país, a partir do fomento a ações de formação e capacitação de jovens negras e periféricas e ingresso de jovens negras no mercado de trabalho”.
Em agosto, segundo o banco, o BB se tornou embaixador de movimentos relevantes do Pacto Global da ONU no Brasil, relacionados à igualdade social, a gênero e a trabalho decente, bem como assumiu o compromisso. Em um dos 12 compromissos públicos e com metas concretas na agenda ASG, o banco tem a meta de chegar a 30% de pretos, pardos, indígenas e outras etnias sub-representadas em cargos de liderança até 2025.
“Em março de 2023, o Banco do Brasil já alcançou a meta de 23% de pretos e pardos em cargos de gestão sênior previstos para 2025.” Por fim, o Banco afirmou que deixava de entrar, neste momento, “em discussões histórico-jurídicas que, apesar de necessárias para uma abordagem ampla e profunda dos questionamentos trazidos por essa procuradoria, poderiam culminar em complexo e longínquo debate jurídico”.
“O objetivo primordial do Banco do Brasil é continuar a contribuir de maneira cada vez mais pronunciada, no quanto se mostrar necessário e nos limites das suas regras de governança, para a finalidade maior perseguida nesse inquérito civil, que é a busca da verdade histórica e da igualdade étnico-racial.”
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