Depois de negar a licença ambiental para a perfuração de um poço na bacia da Foz do Amazonas, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) tem pela frente uma nova agenda na Amazônia: a renovação da licença de operação da hidrelétrica de Belo Monte, em Altamira.
Pressões de opositores do empreendimento e o viés ambientalista do atual governo são fatores que elevam as preocupações sobre o futuro da usina, uma vez que há riscos de a licença não ser renovada. Mas o mais provável, dadas as consequências para o setor elétrico de eventual negativa do Ibama, é que a renovação seja concedida, com a imposição de condições.
A usina é marcada por polêmicas desde a concepção. O episódio mais marcante foi em 1989 nas imagens em que a índia Tuíra encostou um facão no engenheiro José Antônio Muniz, em uma reunião no Xingu para apresentar o projeto das duas usinas. Quase 20 anos depois, em 2008, na apresentação do projeto da usina em Altamira, o engenheiro Paulo Fernando Rezende, da Eletrobras, convidado por entidades da região para apresentar os detalhes da usina, foi agredido, também com facão, por índios depois da exposição, levado ao hospital com corte no braço.
A hidrelétrica foi leiloada em 20 de abril de 2010 e o contrato de concessão foi assinado pela Norte Energia, que tem entre os acionistas Cemig, Light, Eletrobras, Vale e Neoenergia (veja quadro), em agosto do mesmo ano. A concessão da usina é de 36 anos (para incluir o prazo de construção), com possibilidade de renovação, por mais 30 anos. Desde novembro de 2019, Belo Monte é a maior usina 100% brasileira em plena operação comercial, com potência de 11.233 megawatts (MW). Itaipu, com 14 mil MW, está na fronteira com o Paraguai, dividida no meio: 7 mil MW para cada um dos países.
Em 16 de julho de 2021, 120 dias antes do fim do prazo da licença de operação, em novembro do mesmo ano, a Norte Energia pediu a renovação. Em geral, as licenças concedidas para hidrelétricas têm prazo entre cinco e dez anos. A licença que venceu teve prazo de seis anos. No entanto, por lei, mesmo com o vencimento do prazo, a licença de operação é automaticamente prorrogada e a usina pode operar comercialmente até a manifestação definitiva do órgão ambiental.
A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, tem citado Belo Monte como exemplo negativo de impactos ambientais na Amazônia, no debate público sobre a perfuração na Margem Equatorial, afirmando, porém, que a decisão será técnica. “Estamos inteiramente à vontade para fazer a análise. Esta é a diferença: ninguém será coagido, como vinha sendo, e isso já muda de figura completamente”, disse a ministra em março ao site “Sumaúma”.
No primeiro governo Lula, a construção da hidrelétrica foi fator de desgaste para Marina, que na ocasião deixou o cargo após embate com uma ala a favor da usina, liderada pela então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. Agora Marina também participa da discussão sobre a perfuração de um poço, pela Petrobras, na Foz do Amazonas.
O Ibama, hoje presidido por Rodrigo Agostinho, também emite sinais de que não deve negar a renovação da licença ao alertar para possíveis impactos relevantes na região do Xingu. Em nota, o órgão ambiental disse ao Valor que como o processo de renovação está em andamento não é apontar qual será a decisão institucional sobre o tema. Afirmou que eventual suspensão da licença de operação da hidrelétrica acarretaria na paralisação de todas as medidas de controle de impactos, trazendo grandes prejuízos ao ambiente e à gestão ambiental da própria hidrelétrica. Há ainda riscos de “graves consequências” no âmbito social.
Prossegue o Ibama na nota: “A execução dos planos que constituem o PBA [plano básico ambiental] é fundamental para a gestão ambiental do empreendimento, considerando que ele está plenamente implantado, e a suspensão da licença significaria na não obrigação por parte do empreendedor de executar os diversos planos, programas e projetos ambientais estabelecidos na licença, assim como as condicionantes em andamento, gerando grave impacto negativo na região.”
Segundo a autarquia, diversas atividades seriam prejudicadas com a suspensão da licença, como reassentamento e assistência da população afetada pela implantação da usina, especialmente os ribeirinhos. O monitoramento da qualidade da água, da navegação e do funcionamento do sistema de transposição das embarcações também seriam afetados. A implementação de área de preservação permanente na Volta Grande do Xingu e na recuperação de áreas degradadas, entre outras medidas, também teriam impactos, diz o Ibama no posicionamento.“Há, ainda, enorme risco ambiental, no caso de uma suspensão resultar no deplecionamento [esvaziamento] dos reservatórios Xingu (RX) e Intermediário (RI). Este risco deriva do fato da imprevisibilidade técnica de deplecionamento completo dos reservatórios por não haver prognósticos ambientais deste cenário, levando a situações não modeladas e para as quais não há medidas de controle, monitoramento, mitigação e/ou compensação sequer planejadas”, acrescentou o Ibama.
Procurada, a Norte Energia disse em nota que as 71 obrigações a serem cumpridas estão estabelecidas em 36 condicionantes. Dezoito delas foram concluídas e validadas pelo Ibama e 13 foram atendidas e aguardando validação dos órgãos competentes. Outras 40 obrigações estão em atendimento, sendo 30 permanentes, que terão status “em andamento” durante todo o prazo de concessão da usina. As 10 restantes são obrigações relativas a pescadores, populações ribeirinhas e indígenas, e dependendo de órgãos como prefeituras, Fundação Nacional do Índio (Funai) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICM-Bio),
Sobre o cumprimento de condicionantes, o Ibama afirmou que parte delas foi avaliada de forma preliminar, tendo como referência dois relatórios apresentados pela Norte Energia. Em um parecer, os técnicos do órgão constataram que há obrigações cumpridas e outras em execução, além de algumas com pendências relativas ao pleno atendimento. Porém, o parecer não contempla a avaliação de todos os programas e projetos e de condicionantes que ainda estão sendo analisados, explicou o Ibama. “Somente com a finalização das análises técnicas será possível manifestação conclusiva acerca do atendimento das condicionantes da LO [licença de operação].”
No extremo, paralisar a operação de Belo Monte significaria abrir uma caixa de Pandora, com consequências graves no mercado de eletricidade, algumas até imprevisíveis. Um dos efeitos negativos seria a inadimplência contratual com 36 distribuidoras de energia - com quem a Norte Energia firmou contratos de fornecimento de longo prazo, os quais totalizam cerca de 70% da energia negociada pela hidrelétrica.
Também impactaria sobre cerca de 30% da energia negociada com consumidores que estão no mercado livre: eles precisariam buscar novos contratos para suprir a energia eventualmente interrompida. Além disso, a suspensão do fornecimento implicaria em multas, judicialização e na necessidade de reposição quase imediata de 4,5 mil MW médios, quantidade de energia sem contratos difícil de se encontrar a curto prazo.
Outro efeito seria a alta mais forte nos preços da energia, causada por essa corrida a novos contratos, contrastando com o momento atual de altos níveis de reservatórios e preços baixos. Haveria ainda consequências financeiras: a maior parte da dívida da Norte Energia é com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), da ordem de R$ 20 bilhões. Sem gerar, a receita zeraria, impedindo o pagamento da dívida com os bancos credores, sem contar com a necessidade de envolver os acionistas num eventual calote.
O principal ponto que está em jogo na renovação da licença de operação de Belo Monte é o chamado hidrograma de consenso. A usina adota um hidrograma chamado A/B, que alterna a vazão do rio Xingu a cada ano. Nos anos “A”, a vazão é mais reduzida, na casa de 4 mil metros cúbicos por segundo (m3 /s) nos períodos de cheia. Nos anos “B”, a vazão é elevada para 8 mil m3 /s. Esse modelo foi adotado para garantir a vida da fauna marinha e assegurar a geração de energia. A questão, segundo parte das comunidades ribeirinhas e indígenas, é que a vazão reduziu o volume de peixes e tartarugas de água doce (quelônios).
O Ibama explicou que a vazão “B” vinha sendo adotada entre 2015, início da comercial da primeira turbina, e 2019 (quando a usina passou a operar com todas as turbinas). Belo Monte estaria apta a testar a alternância das vazões até que o órgão adiou o experimento, pedindo estudos adicionais e adequação do modelo de vazões às medidas de mitigação e compensação de impactos ambientais. Desde 2021, a usina opera com 8 mil m3 /s. Essa vazão já foi maior no passado. “O consumo de pescado caiu 60%”, disse Juarez Carlos Brito Pezzuti, professor titular do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (UFPA). Segundo ele, o hidrograma adotado não permite alagamento das margens do rio, nem no tempo nem no espaço esperado.
Pezzuti explicou que o período de cheia do rio Xingu permite que os animais possam se alimentar, armazenando energia para a chegada do período seco, quando há reprodução e desova de espécies. A vazão atual, avalia, causou redução das espécies, pois alaga 20% das áreas anteriormente naturalmente atingidas antes da usina. A Norte Energia diz que cumpre o estabelecido pelas autoridades.
A proposta colocada na mesa é de um modelo de vazão, denominado “hidrograma da piracema”, a fim de permitir um alagamento mínimo na época das cheias, mesmo que isso resulte numa geração menor de energia. Para Pezutti, a obra foi liberada sem o conhecimento do impacto ambiental exato na região. O impasse pode trazer ao país um problema proporcional ao tamanho de Belo Monte: gigantesco.
Fonte : Fábio Couto – Valor Econômico
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