O The Washington Post. O “Deus de São Félix”. O Amigo do Helder. O Desmatamento e a Matança



Uma extensa matéria publicada na edição desta quarta-feira, 27, do jornal americano The Washington Post, deve abalar as estruturas da Amazônia. O personagem central da história é o prefeito de São Félix do Xingu, João Cleber Torres, apontado como um dos maiores desmatadores do Pará.

O título da matéria, “O Deus de São Félix”, faz referência direta a Cleber, hoje um dos principais aliados do governador do Pará, Helder Barbalho. “Ele foi chamado de desmatador e assassino. Hoje é chamado de prefeito”. Diz o sub título da matéria, divida em cinco longos e detalhados capítulos.

O Post faz um longo relato sobre desmatadores que apostaram na política para escapar do braço da justiça, citando, além de João Cleber, os prefeitos de Itaituba e Novo Progresso. “Tais casos não são raros.Uma análise do Washington Post de milhares de infrações federais e dados de candidatos na Amazônia descobriu que as acusações de irregularidades ambientais contra membros da classe política da região não são uma anomalia, mas uma característica definidora.

Nas últimas décadas, à medida que o desmatamento empurrou o bioma para o que “os cientistas alertam que poderia ser seu colapso, as mesmas pessoas acusadas de desempenhar um papel nessa destruição passaram a exercer um poder político significativo sobre ele.”

Diz a matéria frisando que os acusados de irregularidades pela aplicação da lei ambiental federal injetaram dezenas de milhões de dólares em campanhas políticas nas últimas duas décadas e conquistaram cargos públicos mais de 1.900 vezes.

Juntos, as vitórias eleitorais e o financiamento de campanhas formaram um sistema político paralelo, dizem as autoridades, que minou as tentativas de proteger um recurso natural que os cientistas alertam que deve ser preservado para evitar mudanças climáticas catastróficas.

A matéria também fala da chacina que vitimou o ambientalista Zé do Lago e sua família e faz um relato sobre a figura de Francisco Torres, conhecido como “Torrinho”, irmão de João Cleber, grileiro muito temido na região e hoje pré-candidato a deputado estadual.   

 Leia abaixo a matéria na íntegra:

 A Amazônia, desfeita

O Deus de São Félix

Ele foi chamado de desmatador e assassino. Agora ele é chamado de prefeito.

Ele Terrence McCoy, que cobre o Brasil para o The Washington Post, visitou uma cidade remota construída ilegalmente dentro do território indígena para esta história.

SÃO FÉLIX DO XINGU, Brasil — A notícia se espalhava pelo território indígena: os invasores da terra se preparavam para atacar. Aldeões remotos disseram que estavam cercados por cavaleiros armados. As autoridades alertaram para a violência. Uma tribo vizinha disse que “sangue pode ser derramado a qualquer momento”. E em um trecho amargamente disputado, um homem franzino parou diante de uma casa de madeira, temendo que tal momento tivesse chegado.

Kawore Parakanã, líder do povo Parakanã, se aventurou quilômetros na selva em maio com três guerreiros para rastrear as invasões que tornaram esta terra indígena no estado do Pará uma das mais desmatadas da Amazônia. Mais à frente havia uma clareira ilegal. Atrás dele havia um barraco de madeira. Do lado de fora da residência, uma serra elétrica tossiu acordada.

“Kawore,” um dos guerreiros disse, “alguém está em casa.”


Eles consideraram suas opções. Uma era lutar, recuperar a terra. Mas eles viajaram desarmados, e Kawore acreditava que seriam mortos. Outra era procurar ajuda — mas de quem? Ele não pôde ir ao presidente brasileiro Jair Bolsonaro, que diz que as restrições dentro do território indígena impediram o desenvolvimento econômico do país. Ele não podia ir para as comunidades vizinhas, povoadas por recém-chegados que olham seu território com avareza.

Mas acima de tudo, ele não podia ir ao prefeito, um dos homens mais poderosos e temidos da Amazônia, conhecido por alguns como “o deus de São Félix”.

Não é só que o prefeito João Cleber Torres se alinhou com os grileiros. É que ele foi descrito – por procuradores federais, policiais, repórteres, pesquisadores financiados pelo governo e um juiz federal – como um.

Torres mudou-se para São Félix do Xingu em 1981, quando era pouco mais que uma floresta densa. Ele então é acusado de ter construído o que os promotores federais descreveram em um memorando interno como uma grande organização criminosa que massacrava a selva – primeiro extraindo sua madeira preciosa, depois roubando a terra e vendendo-a para ser desmatada para pastagem. Torres, os advogados escreveram no memorando, orquestrou “dezenas de homicídios”, montou uma rede de 100 pistoleiros e tomou territórios violentamente dos fracos e isolados, inclusive neste território tão indígena.

Relatórios policiais mostram que ele foi investigado por homicídio em 2002. Sua ficha criminal o liga a dois casos de tentativa de homicídio em 2003 e 2005. Os registros indicam que ele foi acusado de desmatamento ilegal, multado em mais de US$ 2,4 milhões por desmatamento e acusado advogados, em 2016, de submeter trabalhadores rurais a condições análogas à escravidão.

A frase que um jornalista e moradores brasileiros atribuem a ele: “Ou você me vende a terra, ou eu compro da sua viúva”.

Torres, 61, nunca foi condenado por nenhum crime. Ele disse que se opõe ao desmatamento ilegal e sempre seguiu as leis ambientais. Ele descartou todas as alegações de irregularidades como não comprovadas e disse que publicá-las seria potencialmente um “ato criminoso contra minha honra”.

“Em nosso país, temos um sistema de justiça bem estruturado e bem desenhado, baseado em princípios jurídicos fundamentais e guiado pelos direitos humanos internacionais”, disse Torres em comunicado. “Ninguém mais está autorizado a atuar como judiciário, emitindo condenações morais contra meu nome, como está acontecendo aqui, ferindo gravemente nosso sistema de justiça e meus direitos fundamentais.”

Em uma região onde as pessoas acumulam riqueza e poder por meio do desmatamento, e onde os líderes locais encarregados de fazer cumprir as leis ambientais são muitas vezes as mesmas pessoas que supostamente as violaram, Torres é apenas um dos muitos governantes da Amazônia acusados de crimes ambientais. Mas poucos comandam uma cidade tão vasta ou ecologicamente ameaçada como São Félix, que rotineiramente registra algumas das maiores taxas de desmatamento e emissão de carbono do Brasil.Uma de suas florestas mais ameaçadas é a dos Parakanã, na Terra Indígena Apyterewa, onde Kawore observava a casa de madeira.

A única coisa que podia fazer, decidiu, era fugir. Era muito perigoso enfrentar o invasor. Ele também se preocupava em antagonizar Torres. Em janeiro, três ambientalistas foram mortos ao longo de um trecho de floresta do rio Xingu que os registros de propriedade mostram que foram reivindicados pelo irmão do prefeito. O crime continua sem solução. Os irmãos Torres negaram envolvimento, mas isso não acalmou as suspeitas na comunidade.

Kawore virou-se para sair. Ele não iria para a casa de madeira. Não queria conhecer o homem que morava lá, Erasmino Ferreira dos Santos, 71 anos. Não queria ouvir Ferreira contar como veio para esta terra, derrubou a floresta para pastar gado e não sentiu remorso. O colono sabia que o prefeito estava do seu lado.

“A melhor pessoa”, disse Ferreira. “Ele nos ajuda muito.”

Por que as pessoas votam neles ?

a Amazônia, há pouco custo político para destruir a floresta. Aqui, um vice-prefeito de Mato Grosso é citado três vezes por desmatamento e é reeleito no ano seguinte. Um prefeito do Amazonas é preso e acusado pela Polícia Federal de participar de um protesto que destruiu uma base de fiscalização ambiental — e permanece no cargo. O “Rei da Mineração de Ouro”, como foi apelidado por uma revista nacional, é condenado a quase cinco anos por desmatamento ilegal – mas beira a reeleição como prefeito no Pará.


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